Liberar arma municiada cria "porte de arma disfarçado", dizem especialistas

O decreto prometido pelo presidente Jair Bolsonaro (PSL) para ser assinado hoje deve dar aos mais de 250 mil cidadãos registrados como colecionadores, atiradores desportivos e caçadores o direito de transitar com armas e munição. Para especialistas ouvidos pelo UOL, a medida é uma burla ao Estatuto do Desarmamento e, na prática, cria um porte de armas alternativo --que hoje é proibido, exceto para categorias específicas e cidadãos que comprovem essa necessidade específica.
A de Bolsonaro deve mudar um dos dois registros de armas existentes no país: o Sigma (Sistema de Gerenciamento Militar de Armas) é gerenciado pelo Exército. O outro sistema se chama Sinarm (Sistema Nacional de Armas), controlado pela PF (Polícia Federal) e destinado a registros de armas para autodefesa de pessoas físicas, órgãos públicos civis e empresas de segurança.
Hoje, para ter direito a andar armado, é preciso que uma pessoa física faça um pedido pelo Sinarm, deixando claro os motivos a serem analisados pela PF. Nos últimos cinco anos, o número de portes concedidos pela PF cresceu 381%.
Há também categorias que têm direito a porte de arma, como policiais.
Em janeiro, o presidente assinou um decreto flexibilizando o direito a posse de arma --que é a garantia legal para ter uma arma dentro de uma propriedade privada, seja uma residência ou um estabelecimento comercial.
O registro de armas na modalidade CAC (sigla que inclui caçador, atirador e colecionador) não havia ado por mudança nesse governo, mas era alvo de cobrança dos armamentistas.
Para se registrar como CAC é exigido apresentar certidões negativas, ser filiado a um clube de tiro, realizar avaliações técnicas e psicológicas e ter um local adequado para guarda do acervo. Só após essas comprovações, o cidadão pode dar entrada no pedido para a compra das armas.
Alta de 897% em cinco anos
O UOL solicitou ao Exército, ontem, quantos registros ativos existem no Sigma, mas a corporação informou não ter dados atualizados e disse que apenas hoje poderia enviar essas informações. Segundo o Instituto Sou da Paz, o registro de armas para os CAC cresceu 897% em cinco anos.
Ao final de 2018, havia 255 mil registros ativos. "Isso é mais que as polícias de Rio, São Paulo e Minas Gerais juntas", diz Bruno Langeani, do Instituto Sou da Paz.
"É muita gente com o a muita arma, e algumas vezes armamento de calibre às Forças Armadas. Um civil com registro feito pela PF tem calibre, mas um colecionador não", afirma.
Segundo Langeani, a medida é uma clara tentativa de burlar o Estatuto do Desarmamento.
Em vez de fazer o debate no Legislativo [ando uma lei pelo Congresso], o governo tenta por um decreto, em uma canetada, conceder esse porte disfarçado
Bruno Langeani, do Instituto Sou da Paz
Para o pesquisador e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública Daniel Cerqueira, se o decreto confirmar a extensão do trânsito com arma municiada, haverá uma afronta à legislação. "Essa mudança vai contra o Estatuto do Desarmamento, portanto ela será ilegal", afirma.
Cerqueira lembra que, em 14 de março de 2017, o Exército publicou uma portaria dando o direito a atiradores desportivos andarem com armas municiadas entre suas residências e os clubes de tiro. Para isso, basta solicitar uma guia de tráfego. "Já tinha havido essa alteração, que não enxergamos como positiva", diz Cerqueira.
A previsão é que o novo decreto amplie essa flexibilização para outros tipos de registro e a necessidade da guia de trânsito para deslocamento.
"Se isso se confirmar, será uma lástima, só vai contribuir para a insegurança. Armas à sociedade vai na contramão das evidências empíricas, científicas, internacionais. Isso leva a mais insegurança dentro do lar, já que aumenta em cinco vezes a chance de alguém sofrer homicídio, se suicidar ou haver um acidente. Sem contar que muitas armas são extraviadas", afirma.
O pós-doutor e professor de direito criminal Welton Roberto afirma que o Estatuto do Desarmamento é claro ao prever que apenas alguns profissionais e pessoas em determinadas condições possam portar armas.
"Ao andar com as armas municiadas, a pessoa vai desvirtuar o fim previsto no estatuto. Se isso se confirmar, ele estará desvirtuando as licenças. Qual necessidade de um atirador ou colecionador sair de casa com a arma municiada?", questiona.
O pesquisador do Obvio (Observatório de Violência Letal Intencional) Ivenio Hermes concorda. Para ele, qualquer medida alterando o Estatuto do Desarmamento sem uma discussão social não tem amparo legal.
"Qual a dinâmica da possibilidade de atiradores portarem suas armas carregadas, já que elas são adquiridas com a finalidade do tiro esportivo e de caça? Simplesmente ampliar sua utilização para a autodefesa", afirma.
Munição sem limite e fim de monopólio
Além da mudança no critério de porte de armas, Bolsonaro prometeu alterar também a compra de munição, tornando irrestrita para essa categoria de registro.
"Hoje, esse limite de compra varia do tipo de categoria, mas os atiradores --dependendo do tipo-- podem comprar um número bastante grande de munição. Já no caso de coleção de armas é bastante ", diz Bruno Langeani.
Segundo o site do Exército, mesmo com limites estabelecidos, o atirador pode solicitar ao Exército autorização com a "exposição de motivos da efetiva necessidade de aquisição de munição acima do limite, com o parecer da entidade de tiro de vinculação".
A ampliação do o à munição também deve dificultar a rastreabilidade. Hoje, diz o especialista, apenas a munição para as forças de segurança são marcadas. "No caso da recarga feito dentro de clube de tiro é bastante preocupante. Se você abre o leque de compra, abre muito o desvio de munição", afirma.
O sistema do Exército sempre foi alvo de críticas, tendo sido inclusive citado no relatório final da I (Comissão Parlamentar de Inquérito) do Tráfico de Armas. "Desvios de armas pertencentes aos acervos de colecionadores, atiradores e clubes de tiro, servindo-se para tanto da fiscalização ineficiente do Comando do Exército", diz o texto, de novembro de 2006.
Sobre a questão do fim do monopólio de armas pela Taurus que Bolsonaro citou como parte do decreto que á hoje, Daniel Cerqueira lembra que essa é uma demanda já antiga de vários grupos a favor do armamentismo e das corporações policiais. "Existe uma questão já conhecida de problemas, armas que disparam sozinha. Há uma demanda antiga para abertura de mercado", aponta.
O que diz o Estatuto do Desarmamento
Segundo o Estatuto do Desarmamento, o porte ilegal de arma de fogo prevê uma pena de reclusão de dois a quatro anos de prisão a quem for flagrado, além de multa.
A manutenção do Estatuto do Desarmamento e da atual regra sobre o porte foi um pedido feito pelos ministros da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, e da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, em documento enviado a Bolsonaro no 11 de janeiro, no qual defenderam a mudança exclusiva na questão da posse de arma no Sinarm --assinada por Bolsonaro em janeiro.
"Não se recomenda, no atual momento, a revogação da Lei nº 10.826, de 2003, uma vez que a simples alteração da sua regulamentação pode atender os anseios da maioria da população brasileira. Assim, o que aqui se propõe é apenas uma nova redação aos artigos 12, 15, 16, 18 e 67-C do Decreto no 5.123, de 2004. Trata-se de providência singela e que eleva a possibilidade de concessão de autorizações para a posse (não o porte) de armas de fogo, dando à necessária presunção de necessidade condições de ser avaliada de forma mais objetiva", afirmava o texto.
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