'A terra me pariu': ritual enterra pessoas vivas em retiro espiritual no DF
Maurício Businari
Colaboração para o UOL
04/06/2025 05h30
Em um retiro de quatro dias em uma chácara no Distrito Federal, participantes se submetem voluntariamente a um ritual que simula o próprio enterro, como forma de renascimento simbólico.
O que aconteceu
A prática faz parte de um ritual chamado "Renascimento Xamânico", promovido pela Casa Semente Experience, que conduz retiros espirituais com medicinas da floresta e rituais terapêuticos. Vídeos que mostram os participantes sendo enterrados vivos viralizaram nas redes e geraram reações diversas. Comentários como "Meu avô fez isso em 96, gostou tanto que ficou" ou "As minhocas: hoje tem carne fresca" se multiplicaram no Instagram.
A Casa Semente afirma que a proposta do ritual é promover reconexão com a natureza e com a própria existência. "É como retornar ao útero da Terra. Respirar com ela, entregar o que já não nos serve e nascer de novo", explica Lila Sousa, terapeuta integrativa e idealizadora do projeto ao lado da irmã e sócia Priscila Sousa, que também atua como terapeuta no espaço.
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As duas conduzem juntas os rituais do retiro, que ocorre em uma chácara no Distrito Federal. Inspirado em práticas indígenas da Amazônia peruana, o ritual integra um retiro de quatro dias. O pacote custa R$ 697 e inclui hospedagem coletiva, alimentação e todas as vivências.
Antes do ritual, os participantes am por uma anamnese e são orientados sobre todos os detalhes da experiência. Grávidas e idosos podem participar, desde que estejam com boa saúde. Durante o enterramento, Lila, Priscila ou outra facilitadora permanece o tempo todo ao lado do participante, orientando e tranquilizando com palavras e acompanhamento direto.
O ritual é feito com o participante deitado em uma cova rasa, com o corpo coberto de terra e o rosto protegido por um pano fino. Segundo as facilitadoras, o pano serve para evitar que terra entre nos olhos, ouvidos e nariz, e também permite a respiração. A respiração deve ser lenta e consciente.
A média de tempo varia de três a sete minutos, mas há casos em que o enterramento dura mais — sempre com supervisão direta. Quando deseja sair, o participante levanta a mão e é imediatamente retirado da terra, com auxílio das terapeutas.
Grávidas, idosos e pessoas com histórico de dor crônica já participaram da vivência. A Casa afirma haver uma conversa prévia com todos, incluindo anamnese emocional e física. A participação no ritual é opcional e só ocorre com o consentimento expresso do participante.
O que dizem os "enterrados vivos"
Participantes do ritual relataram ao UOL experiências profundas e transformadoras. Muitos mencionaram o simbolismo de entregar o corpo à terra como uma metáfora para soltar dores, medos e versões antigas de si mesmos.
Alguns chegaram ao ritual com ansiedade ou histórico de depressão. Outros se entregaram à vivência com leveza e confiança. Todos afirmam que saíram diferentes — mais presentes, mais vivos ou mais conscientes do que desejam da vida.
Fernanda Rodrigues Barreira, 40, Taguatinga (DF)
Fernanda buscava silêncio e reconexão. "Entregar meu corpo à terra foi um ato de rendição. Lá dentro, vi imagens da infância, senti perdão, gratidão, encontro comigo mesma". Ao sair, disse à reportagem: "A Terra me pariu, e eu me permiti nascer de novo".
Ela afirma ter alcançado uma paz nova. "Caiu a ficha de que a morte é uma aliada da vida. Aprendi que posso confiar nos ciclos".
Letícia Freire, 41, Ceilândia (DF)
Tycia, como gosta de ser chamada, é professora de inglês, luta contra a depressão e já teve pensamentos suicidas. "O ritual me fez querer viver. É impossível esquecer". Segundo ela, a terra funcionou como um abraço. "Me senti acolhida em cada centímetro de pele".
Para ela, a experiência marcou o fim de ciclos nocivos. "Foi a primeira vez que chorei por estar viva", afirmou. "Indicaria até para quem tem fobia de morte ou lugares fechados".
Laura Lima, 30, publicitária, Brasília (DF)
Laura escolheu a própria música de renascimento. "Ser retirada da terra ao som Spirit, de Beyoncé, foi inesquecível". Ela relata ter feito terapia por anos, mas diz: "Nada me tocou como essa vivência".
Ela credita à Casa Semente uma virada de chave. "Sou uma pessoa salva por essa experiência".
Victoria Trindade, 27, estudante de enfermagem, Brasília (DF)
Victoria é estudante de enfermagem e participou do ritual sem saber que seria enterrada. "Fui por confiança na Casa e saí com uma leveza que nunca senti. Senti a temperatura da terra, o silêncio, a presença de Deus. É um convite para olhar o que importa".
Desde então, diz estar mais focada no agora. "Não olho mais tanto para trás nem para frente. Estou atenta à vida".
Vanessa Moyses, 42, professora de educação física, Águas Claras (DF)
Vanessa tem pânico de ser enterrada viva e chegou a pensar em desistir. "Sempre disse que quero ser cremada. Mas ali, naquele momento, senti que a Terra estava me acolhendo. Quando a terra tocou meu rosto, chorei muito. Era como se estivesse sendo embalada".
Diagnosticada com fibromialgia, pediu cura à Mãe Terra. "Senti como se estivesse sendo lavada por dentro. Saí transformada. Foi emocionante. Sou outra pessoa depois desse retiro".
Francisco das Chagas Araújo Lima Júnior, 60, advogado, Brasília (DF)
Francisco buscava silêncio e autoconhecimento. "Foi como uma viagem no tempo, uma meditação intensa. A pergunta que me veio foi: será que eu vivi a vida que eu queria viver mesmo?".
Ao sair, sentiu leveza e clareza. "A ficha que caiu foi: 'cara, a vida é agora. E eu preciso focar no que faz sentido'".