Mãe aciona facção contra filha de 10 anos: o que é e como age o 'salve'?
Maurício Businari
Colaboração para o UOL
09/06/2025 05h30
A Polícia Civil de Cuiabá, no Mato Grosso, investiga o caso de um "salve" de facção criminosa aplicado contra uma criança de 10 anos — o pedido, segundo investigações, partiu da própria mãe, de 35 anos.
O que aconteceu
A mãe descobriu que a filha de 10 anos estava em um motel com uma adolescente de 13 e um homem de 63 anos. O caso ocorreu em 22 de maio.
Após saber do episódio, a mulher recorreu à facção criminosa da comunidade, que sequestrou a menina, cortou seu cabelo e a agrediu. A criança foi devolvida à mãe já ferida. A Polícia Militar só foi acionada dias depois, quando o Conselho Tutelar encontrou a menina com diversos ferimentos. Ela apresentava lesões nos braços, antebraço esquerdo, polegar esquerdo e perna direita. Ela ficou aos cuidados do Conselho Tutelar.
A mãe teria procurado um representante da facção, que atua na comunidade onde mora, para punir a filha. Segundo a investigação da PJC-MT (Polícia Judiciária Civil de Mato Grosso), ela buscava aplicar um castigo na filha, alegando não conseguir educá-la sozinha.
A criança foi levada por criminosos e submetida a agressões e humilhações, numa ação apelidada de "salve" segundo o jargão das facções. Ela teve o cabelo cortado à força, em uma prática conhecida como "esculacho", aplicada pelas organizações criminosas para constranger mulheres.
A Delegacia Especializada de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente investiga a mãe por maus-tratos. Já o homem de 63 anos, que estava com as meninas no motel, deve responder por estupro de vulnerável. Em nota, a PJC-MT informou que as diligências para apurar os crimes cometidos ainda estão em andamento.
Ineditismo da punição
O caso envolve, pela primeira vez, a aplicação de um "salve" contra uma criança, segundo a desembargadora Ivana David, do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP). "Nunca vi a facção agir contra uma criança", afirmou. "Dez anos não é menor, é criança pela lei".
O termo "salve" designa uma ordem que parte da cúpula da facção. "Salve é determinação: para matar, decretar toque de recolher, impedir visitas", explica. "Não parte de qualquer integrante. A mãe não deu um salve. Ela pode ter feito um pedido, e o 'sintonia local' decidiu agir".
O "sintonia local", explica a desembargadora, é a figura com poder de decisão dentro da facção na comunidade. "Ele recebe reclamações, ouve os envolvidos, julga e aplica a punição", afirmou. "É comum esse tipo de atuação onde o Estado não chega".
Punições como corte de cabelo são usadas como forma de controle simbólico. "Cortar o cabelo é o que eles chamam de esculacho", disse Ivana, que também é pesquisadora especializada em Orcrims (organizações criminosas). "É um castigo moral. Acontece por fofoca, namoro indesejado, desobediência".
O advogado criminalista Fernando Viggiano vê responsabilidade direta da mãe. "Sua atuação, ainda que indireta, consubstancia autoria mediata por instigação dolosa", afirmou. "Ela pode ser denunciada por tortura qualificada, com agravantes previstos no ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente)".
Segundo Viggiano, a responsabilização penal é possível mesmo sem identificar todos os agressores. "A atuação coletiva da organização permite o enquadramento com base na teoria do domínio do fato, nos termos da Lei nº 12.850/13", explicou.
A Lei nº 12.850/13 define organização criminosa e permite responsabilizar quem exerce liderança ou comando, mesmo sem participação direta no crime. Isso se baseia na chamada teoria do domínio do fato.
O advogado recomenda que o Ministério Público denuncie tanto os executores diretos quanto os autores intelectuais. "A promotoria pode pleitear prisão preventiva, aplicação de medidas protetivas e desmembramento processual para maior eficácia", concluiu.
Facção atua como Estado
A facção ocupa espaços deixados pelo Poder Público, segundo Ivana David. "Ela não é só justiça paralela. Oferece saúde, segurança, educação", disse. "As pessoas recorrem à facção para resolver brigas, buscar ajuda médica ou até comida".
O Brasil tem ao menos 88 facções criminosas ativas, segundo dados do Ministério da Justiça. As maiores são o Comando Vermelho e o Primeiro Comando da Capital (PCC), com atuação nacional e articulação dentro e fora dos presídios.
Ivana afirma que o enfrentamento das facções exige mais do que polícia. "É preciso políticas públicas. Educação, segurança e inteligência", afirmou. "O desafio é fazer com que a criança escolha o Estado — e não o crime".
Para ela, o Brasil vive uma guerra assimétrica. "O Estado está sempre depois do crime", declarou a desembargadora. "O desafio é chegar antes. E nós ainda não conseguimos".